(Sobre pinturas de Emerenciano)
“Esquece os ângulos rectos... Pensa arco,
pensa trajectória”.
Paul Auster, “Mr. Vertigo”
A mão pára
mas o gesto contínua
inventando línguas impossíveis
nas abóbadas do mundo.
A mão pára
mergulhando
na turfa vermelha do olhar
enquanto o gesto vai
desfiando um rosário de alfabetos
no corpo grave da terra.
Um homem adormece
nos braços de Afodite
ou nos cacos de vidro
da amargura.
Mas o gesto continua
a bailar-lhe na cabeça
desenhando palavras obscuras
pálidos discursos amarelos
poderosos círculos solares
no céu de Cassiopeia.
Um homem dorme
e entretanto
o mundo fica cheio de palavras soltas.
Signos
sílabas
sinais
sedimentos marinhos
cheiros cor de rosa
conchas
esqueletos de universos afogados
folhas caindo
do perfume de uma vida.
Um homem dorme desenhando
a lascívia das noites de Babel.
Dorme urgentemente
em busca da verdade.
Dorme e voa
enquanto se acumulam
no seu leito
muros de uma argila misteriosamente azul
peixes pálidos aflitos
pérolas tristes
filhos que se foram
grandes sauros de plumas irisadas
pássaros alquímicos
anjos a nadar
no secreto mar da geometria.
E enquanto um homem dorme
à sombra do seu ovo
o mundo fica a transpirar
palavras verdes e redondas
palavras brancas debruçadas sobre o branco
palavras lágrimas de mar
palavras de silêncio
de sal ou de paixão.
Um homem dorme
e o mundo fica a crepitar
de palavras em quechua
basco
mirandês
mandinga
gaélico
crioulo.
Palavras
na língua perfeita do alto das montanhas.
Na língua dos homens que foram
magoados e não têm língua
para o dizer.
E na dos que cantam e bailam
sem razão aparente.
E na dos que vivem na estratosfera
do poema.
Palavras visuais.
Palavras de fumo.
De cabra. De serpente.
Palavras escritas na superfície rugosa
de todos os oceanos.
Palavras que nos trazem o recado de fogo
do fundo da mais funda
e bela insurreição de todos os elementos!
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